domingo, outubro 19, 2008

NO DIA EM QUE O MEALHEIRO SE PARTIU


Em casa onde não há dinheiro todos ralham e partem o mealheiro.
Estamos todos metidos num barco onde nem sequer há mealheiro, perdidos os antigos escudos, e a tormenta em redor, com ventos de todos os quadrantes. É global, ameaçadora, e obriga-nos a arrear o velame inteiro. A chuva e as rajadas de sopros trovejantes, num convés já impossível de atravessar, forçam o comandante a dar ordem de atirar o lastro inteiro, incluindo mercadorias aceitavelmente desprezíveis, pela borda fora, antes que tivesse de rasgar contratos e empurrar para o oceano alguns marinheiros de folha manos abonatória.

Tudo aconteceu muito depressa e os homens que seguem a oscilação do tempo não foram capazes de prever um efeito assim, devido a alterações do clima, entre calores, degelos e dilúvios indiscritíveis. Nos últimos anos, as cheias tinham aumentado de volume e de capacidade destrutiva, um pouco por toda a parte, empapando os arrozais da China, as culturas e vacas sagradas da Índia, ao mesmo tempo que borbulhavam em regiões civlizadas e impunes da Europa, tanto a norte como a sul, além de afogar gados, destruir cidades, mesmo em muitos Estados da E.U.A., de mistura com sucessivos tornados, ciclones, tempestades tropicais. Cheias assim foram parar a outros continentes e partes do globo, em África, como era óbvio, na América do Sul, aliás de forma semelhante no Canadá e na Austrália, países onde não faltam mealheiros e onde a paz parece disfarçar antigos rancores, vontades discriminatórias, tornando as poupanças domésticas em porcos com forma de arranha-céus, monstros em aço e nunca de barro, cujas entranhas fervilham pelo efeito da bolsa de valores, ou pelas trocas de biliões de notas fortes em negócios tão volúveis como os trapalhões artesanatos e cópias que os chinses espalham alegremente pelo mundo inteiro.



Um dia, como aconteceu com as torres de Nova Iorque, sem aviões nem terroristas à vista, o universo financeiro começou a ruir justamente nos Estados Unidas da América, antes mesmo de terem saído do Iraque (Vietnam com areia e deserto), ainda por cima à beira das eleições, tanto mais aterrador porque ninguém achara que Bush merecia a honra de ser assassinado. Era uma bolha imobiliária, diziam os técnicos. Um beliscão que atemorizara o tortuoso jogo das bolsas, começando desde logo a espalhar-se por grande número da instituições bancárias e outras, sobretudo as mais votadas aos efeitos especiais do investimento nos sectores em rodopio de moda, patos bravos em especial, bichos que não emigram, estão em muitos lados, esplorando com despudor emigrantes vindos um pouco de toda a parte, escravos afinal, mesmo com carta de alforria. Afinal, as câmaras de filmar, quando das torres, pareciam estar previamente ajustadas, tendo registado planos de certa expectativa calculista, informada, as quais produziram de facto imagens impossíveis de recolher se não houvesse sinais no ar.
Dentro e fora das bolsas de jogo a dinheiro, outras câmaras estavam de facto previamente ajustadas, como sempre, e começaram a gravar o pânico da derrocada. Estava tudo a ruir, bancos em estado de falência, descidas a pique de acções de todos os negócios, empresas transnacionais, fortalezas do dólar, um enorme tornado, em suma, que era globalizante, como tanto se gosta agora de dizer, e já atravessava o Atlântico, induzindo para o vermelho as aparentes notas de poder das instituições, soprando menos fortemente na Índia e na China porque, nessa zona do planeta, a gente é tanta que a sua força de contenção equivale à portentosa muralha que nem Mao Tse Tung considerou feudalista ou capitalista. Em rápidas manobras de defesa, os políticos da Europa e dos Estados Unidos da América, entre outros, começaram por injectar dinheiro em tudo quanto ainda era riqueza, mesmo virtual, impedindo o pior a curto e médio prazo (assim se pensou). As engenharias transatlânticas, com jactos atravessando o espaço em, pelo menos, dois sentidos, não perdiam um minuto a trabalhar, com lacaios da informática, todo esse imperialismo onde as bolsas crepitavam sempre em baixa, ruínas encobertas, desastres tão apocalípticos como o das tais poderosas torres reduzidas a papel e cinzas em menos de uma hora.


Todos os engenheiros do dinheiro, dólares e euros sobretudo, vinham de longe a dizer que o maior avanço da civilização nos tempos modernos condizia com a queda das repúblicas socialistas soviéticas, o comunismo, a simbólica queda do muro de Berlim, e também com o desenvolvimento do mercado livre, sem regulação, tudo aberto e sem fronteiras. Aos que chamavam a atenção para acções corruptoras assim facilitadas e para a impossibilidade de acreditar no automático equilíbrio das balanças comerciais e outros dados de troca, logo as elites, pomposas e académicas, clamavam que os mercados se auto-regulam. Os que precisassem de pipocas compravam a quem as produia e estes, por sua vez, importavam milho e amendoins. O preço vinha , sacralizado, das leis da oferta e da procura. Que diriam os mais avisados aos africanos acabados de descolonizar, batendo-se em guerra fratricidas, caindo a pique na miséria e na peste? Franz Fanon, que tanto os defendera, sempre havia reconhecido o perigo que espreitava os povos ainda no limiar da história, ao passarem, de súbito para a contemporaneidade. Entrariam, porventura, em derrocada e teriam depois, sob regimes ditatoriais, de recolonizar-se pela tecnologia e seus irrecusáveis operadores?

Em Nova Iorque ou em Bruxelas, se não se reinventarem regras duras e certeiras no próprio domínio democrático, é o apocalipse. Se as teorias rascas que nos têm dirigido, como em plena batota, não forem irradicadas naquele sentido (pelo menos), não haverá Sócrates, nem Ferreiras Leite, nem Portas & Portas, nem os Jerónimos, nem Louçãs, nem Medinas Carreira, Rebelos, Rangéis, Constanças, Pachecos Pereir, ou gente assim, redonda, batalhadora com espadas de madeira, mesmo os antigos presidentes, Eanes, Soares, Sampaio ou o actual, ninguém de ninguém, nos salvará da morte global, universal, na petrificação quente e gelada do planeta, perdidas as próprias tecnologias no pântano lamacento carregado de milhares de toxinas, pasta silenciosa da CO2, um buraco negro cada vez mais perto de toda essa caducidade.

Nesses longos anos do fim, é possível que sobreviva alguém despojado de tudo e sabendo qual o seu linite. Ainda capaz de criar. Mas sem a manipulação do consumo e desconhecendo o dinheiro. Ou o mealheiro.