segunda-feira, março 31, 2008

TECTOS PROVISÓRIOS E LIXO DE ZINCO


É nestes subúrbios cada vez maiores, um pouco por todo o mundo, que os pobres e os grupos de assaltantes formigam interminavelmente, na ilusão enlameada de um futuro dourado, cada vez menos possível e cada vez mais sonhado. As favelas do Rio copiaram-se a si mesmas pelo país inteiro, derramando dejectos pela encosta rasgada, contra as subidas sinuosas entre barracas de madeira e lona, alcandoradas nos socalcos aguçados pelo homem, caixas de cartão e zinco e panos e pneus a configurar a via sacra de mil infâncias degradadas, violência depois, lá e deste lado, pelo Oriente Médio, as religiões urbanas e todas as outras dilacerando, em contradição com os próprios profetas, a vida das comunidades, muçulmanos, cristãos e cruzadas outrora, a Inquisição matando em nome de nada, enquanto hoje papas e cardeiais querem poupar o mínimo feto já marcado pelo delírio da Natureza. Agora dizem que vão alindar as favelas já de tijolo e à semelhança de casas, tudo para colorir a miséria e arrancar os territórios aos compradores e vendedores de droga. Deus não é grande e as religiões envenenam tudo, diz, de fala aberta, Christopher Hitchens.

terça-feira, março 25, 2008

ATÉ OS ACTORES VIRAM ESTEREÓTIPOS









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Tenho sido, desde o início das telenovelas brasileiras, um observador atento a este género de expressão audiovisual. É corrente ouvir-se falar com desdém desse produto, seja ele produzido no Brasil ou em Portugal. Certamente que se pode argumentar que as regras ou modos de fazer novelas para televisão, aqui e além Atlântico, sem falar nas vias semelhantes percorridas pelo México e Venezuela, cristalizaram em estereótipos profundamente negativos, capazes de diversos efeitos de devastação cultural, de distorção do gosto, criando vícios de consumo televisivo bastante negativos. Pouco depois do estado de graça da famosa «Gabriela», as pessoas de cultura, comentadores e intelectuais, disseram-se distanciados desse tipo de poluição, negando aos sete ventos o mínimo interesse por tudo o que se fazia. Ainda nem sequer surgira «A Vila Faia», primeira experiência portuguesa na esteira (e por vezes na pior esteira) do modo brasileiro. E contudo, relativamente a pessoas cultas mais disponíveis, houve quem se atrevesse a apontar áquela produção portuguesa um breve tom conservador, no que este conceito pode ter de positivo, demarcando-se assim de alguma das trepidações especulativas, em termos de mercado, largamente explorado pelos produtores basileiros e a despeito da boa tradição que eles haviam certificado por volta dos anos sessenta. Os mais cépticos, mesmo que por casmurrice ou snobismo, diziam que a língua portuguesa não se prestava para os géneros ausiovisuais, quer no cinema, quer na televisão, incluindo (género diferente) no próprio teatro. Falava-se de tudo num santo acaso de asneiras e o chamado grande público já não foi capaz de reparar no novo cinema português, nessa obra prima que se chamou «Abelha na Chuva», nem nas telenovelas da SIC ou da TVI, quando estas estações ainda quiseram marcar pontos referentes à nossa identidade. Hoje está sobejamente provado que a língua portuguesa não é castradora da expressão oral e apenas tem de se adequar às formas do texto ou da fala, do perfil das personagens, sem esquecer os níveis de altura, o contexto onde se dialoga, quem e porquê dialoga. É para isso, entre outras coisas, que existem os directores de actores, a par de guionistas estudiosos e de directores de canal que permitam a experimentação inovadora (e libertadora) dos realizadores.
A verdade é que se formou entre nós uma verdadeira escola de novos actores, tendo os mais idosos, sobretudo vindos do teatro, procurado alcançar patamares de naturalidade e expressão significante. Hoje, entre as pessoas que souberam seguir o fenómeno da telenovela portuguesa, nota-se um reconhecimento de verdadeiras descobertas, de uma vitalidade contaminante, por vezes a emergêmcia de actores de grande qualidade, que brilharam nas obras mais profundas e mais desligadas da «fábrica de salsichas» que nos chegam de longe, novelas que alguns produtores procuram contornar ou esquecer, ligando-as à equívoca repulsa pela lentidão do cinema português. Depois de grandes sucessos (e se mais houvesse mais o público apostaria neles), o binómio produto/audiência, defendido por homens que deveriam saber que Bach pode aceder ao sucesso no audiovisual como qualquer Carrera de Coliseu a abarrotar. Tudo depende do modo como se encena cada proposta no meio televisivo, no qual Pina Bausch poderá arrastar largas audiências como os saraus de dança de salão, sempre repetindo atmosferas, soluções técnicas, compéres de saias de honra, numa ensurdecedora projecção de mau gosto e circo, embora se deva reconhecer o melhor de tudo: o trabalho de pessoas de vários meios artísticos e a capacidade de prestações surpreendentes.
O pior chegou entretanto, com novelas de grande produção, com belíssimas prestações de representação, mas em que tudo se encontra espartilhado pelos piores truques brasileiros, histórias da maior inversomilhança, cheias de armadilhas vindas do inferno, mentes tortuosas até ao caricato e ao nojo. Porque assim (dizem os tais directores de sucesso) é que se adoça o gosto do público, falso problema já amplamente provado. O público muda de azimute e de capacidade analítica, quando os argumentos são bem pensados, inscritos na nossa cultura e cultura artística contemporânea. Na hora em que começa, com avisos de grandeza, uma outra telenovela, aproximam-se do fim, por exemplo, «Fascínios» e «Deixa-me amar-te», coisas por vezes indecorosas, mesmo sem falar em termos culturais, artísticos e pedagógicos. Gente que apreciava a actriz Alexandra Lencastre, e até o irregular Rogério Samora, deplorou as suas crises patéticas, forçados a representar assombrosas anomalias, com os tiques à flor da pele ou sem saberem para onde endereçar os passos, nomeadamente durante as solidões lacrimejantes do tal brâmane de empréstimo, o pobre Raul. E quem poderá calar-se quando a família da Guidinha aparece em cena, sempre na mesma sala e nas mesmas posturas, ganaciando em termos absurdos e cuspindo na pobrezinha da Ester. Eu diria que isto tem que ser analisado por quem de direito e os falsos especialistas deportados para os debates sobre os pequenos equívocos da política. Os modelos não se copiam, renovam-se. Uma cena íntima, de afecto e mútua compreensão murmurada, não pode ser esticada, entre redundâncias enjoativas, só porque os criadores do produto acham que têm de meter canções onde elas não têm lugar. As bandas sonoras, mesmo das telenovelas, têm de perseguir o que de melhor o cinema nos ensinou, apesar da diferença dos meios, assim como a luz tem de nos relacionar com os tempos e horas do dia em que estamos a viver. Até isso, tão fácil de fazer nos nossos dias, acusa por vezes graves entaladelas.
Precisamos de uma Associação de Espectadores que, abaixo ou acima do déficit, comecem de facto a exercitar a cultura dos seus direitos, entre a própria publicidade que rompe todos os limites legais, experimentando terapias cívicas em todos os ramos desse campo. O cinema também pode ser incluído, mas nesse caso os monopólios precisam de regulamentados, devendo fomentar-se a vinda até nós de cinematografias quase desconhecidas, minimizando o design robótico, pateta e monumental, com que a América nos coloniza, tornando alguns espectadores consumistas da mera pressa, incapazes de dispensarem a avalanche de publicidade que lhes im-pinge Rambo contra a revisitação de Wells, que vão salivar na «Call Girl» em vez de, sem pipocas, reverem os valores estéticos e filosóficos da obra de um Tarkovsky, cujas edições em DVD felizmente se têm esgotado.

sexta-feira, março 21, 2008

O LONGO CAMINHO PARA AS ESTRELAS



O Século XX, revolucionando muitos conhecimentos, indústrias e projectos, abriu perspectivas a viagens fora da atmosfera terrestre. A astrofísica e as tecnologias da navegação no espaço, em plena imponderabilidade e contudo a altas velocidades, desenharam por sua vez uma nova utopia, à qual, aliás, os escritores do género literário da ficção científica emprestaram fascinante verosomilhança. Depois de muitos desenvolvimentos temáticos em torno destes assuntos, e à luz do saber actual, o homem sabe que a sua espécie terminará, lenta ou de forma abrupta, ao ritmo das leis cósmicas, da vida e morte das estrelas, do choque entre galáxias, dos buracos negros, do próprio envelhecimento e pulverização do sistema solar, daqui a curtos milhões de anos. Aparentemente, a fabulosa criação da espécie humana, dotada de inteligência avançada, de capacidade criadora apoiada no amplo espaço da consciência e de próteses que quase imitam a vida, é uma realidade tão poderosa que parece ter meios de se prolongar para além do seu curto destino biológico. As hipóteses desse sonho, tão acalentado pela biologia molecular e outros ramos da ciência, ajudaram ao desenho de absorventes utopias do homem para além de si mesmo. Entretanto, numa perspectiva tecnológica ainda artesanal, os países mais poderosos (e agora por alguns mais) dedicaram-se a estudar práticas de viajar no espaço ( a Lua foi o primeiro astro que o homem conseguiu atingir, explorando aspectos estruturais em cada breve visita) e assim se esquematizaram projectos de aceder a Marte, enquanto centenas de sondas dirigidas à distância têm estudado quase todo o sistema solar, ultrapassando-o em perda no espaço indizível. O sonho de estabelecer bases vitais em certos planetas, ou muito longinquamente noutros sistemas propícios à vida humana, ganha «forma» na construção de uma estação espacial que orbita em torno da terra e que foi agora acrescentada de mais um módulo de grande importância para estudos naquele sentido e no apoio aos estudos que os cientistas astronautas desenvolvem no habitat ainda irrisório da estação. Daqui, em construção lateral, já é viável projectar uma viagem a Marte. Mas Marte parece inóspito. Para além dele, os satélites de outros planetas acenam com breves ilusões. Eternizar a vida humana para além das fronteiras do nosso sistema solar, procurando instaurar colónias bem longe, noutros sistemas e astros, configura uma ideia que não deixa de ser fascinante e quase que se torna em novo culto, numa demorada esperança. Porque as comunidades se interrogam cada vez com maior angústia sobre a condição humana, suprema «invenção» da Natureza, de um Deus que nunca veremos, algo de grande complexidade, coisa raríssima, e contudo «destinada» a pequenos segmentos de afirmação, vidas individuais de 70 a 90 anos, médias menores no mundo inteiro, um «projecto» para se desfazer poucos minutos depois de ter sido «concluído». Mais um milhão de anos, dois ou vinte, segundos no tempo Universal, e não seremos nada se não reabilitarmos o corpo, as fecundidades em perda, viajando o mais depressa possível para habitats adequados ou adequáveis ao prolongamento do ser.
Veja-se, nas fotografias, a azáfama de doze horas no vazio em torno da Terra, para dar mais corpo a uma coisa que não se sabe bem para que servirá daqui a três ou quatro gerações.

terça-feira, março 11, 2008

NA MORTE DO PINTOR ROGÉRIO RIBEIRO


PINTURA DE ROGÉRIO RIBEIRO
uma atmosfera que evocamos no seu sentido humanista


E assim o país se apaga um pouco mais, por cada morte aqui anunciada, por cada perda de personalidades cuja vida e obra constituem valores inestimáveis da nossa identidade. Rogério Ribeiro foi (e será sempre porque nem todo o país amolece de esquecimentos) um grande artista em várias disciplinas do pensamento e da acção criadora, nos últimos tempos senhor de uma obra fascinante, de pureza, de denúncia, de testemunho e espírito humanista. As frentes da actual cultura portuguesa têm dividido a presença na nossa memória de gente desta estirpe, a montante do fio incendiário dos anos oitenta. Contra isso temos lutado, porque não basta lembrar Sousa Cardozo, por exemplo, passando por Paula Rego ou Júlio Pomar, e enfatizando, por fim, tudo o que acabou de aparecer, como se o mundo não tivesse outras verdades e uma remota genética universalizante. Pois aqui se deseja afirmar que o Portugal moderno, para se reconhecer e progredir, tem de homenagear pessoas como Rogério Ribeiro, que nos ajudaram a vencer o tempo e os bloqueios da mediocridade. Aqui fica apenas uma pintura, uma peça que exprime bem o despojamento e a riqueza do homem na trajectória que tem de inventar contra a irremediável e absurda escassez de si mesmo.

domingo, março 09, 2008

ENSINAR NA RUA: O SACRIFÍCIO



Todo o ensino, entre quase tudo, passa hoje pela imposição do espectáculo, em certos casos pela violência, a par da drástica redução do aprofundamento, espiritual e prático, da pessoa humana. É o que se verifica, nos últimos tempos, em mais uma crise das reformas, com um governo cada vez mais fustigado por diversas oposições, no terreno da mera recusa, sem alternatívas que exprimam a diferença bem sustentada dos planos em curso. O governo, no seu pragmatismo e projectos relativos ao processo de alteração do sistema educativo, foi ontem fustigado talvez pelo maior movimento de rua congregado pelos professores e seus simpatizantes, mesmo que não se perceba com toda a clareza, o erro que cria condições capazes de mobilizar oitenta mil manifestantes cuja circulação em Lisboa ganhou força inusitada, que a encenação própria, de camisolas, frases, slogans e bandeiras, mais sublinharam o afrontamento. Apesar de algumas arrojadas iniciativas de reordenamento da rede escolar, de concentração de competências e de «vinculação» dos docentes provisórios às escolas por períodos de três anos, contra um ano apenas, o grosso dos problemas logísticos, de particularidades locais, está muito longe de ser resolvido, a par daquele que se levantou entretanto, o da avaliação dos agentes educativos no seu desempenho, conhecimentos e actividade pedagógica.
Num artigo de opinião, no Expresso de 8 de Março, Sousa Tavares explicou, com grande propriedade, o seu ponto de vista sobre o assunto. Perante o pedido insistente de demissão de Maria de Lurdes Rodrigues, ministra da Educação, ele considerou que a sua «queda teria o efeito de um toque a finados por qualquer futura tentativa de reformar o Estado e mudar o país». Trata-se de um problema que se tem complicado, não apenas neste ministério. O da Saúde sofreu graves oposições, acabando por desalojar o ministro e redireccionar algumas práticas. «Desde que há Ministério, desde que há Educação, desde que há democracia (cito o mesmo articulista), que não me lembro de a Fenprof e os sindicados da Educação terem deixado de exigir a cabeça do ministro ou ministra em funções.» Lembro-me das incompreensões (mútuas) no tempo de Cardia, logo apelidado de fachista, e dos erros de perspectiva, pelo menos no caso do Ensino Superior Artístico, cometidos pelos seus assessores ou Directores Gerais. Marçalo Grilo, muito antes de ser ministro, não concebia que houvesse estudos de arte ao nível da Universidade, nem lhe parecia que o país necessitasse da implementação de cursos de design. Esta situação, escorada na espera da «vontade política» e na ideia dos timings, provocou efeitos nefastos no país, no desenvolvimento do ensino Universitário e na qualificação de certos sectores da nossa produção especializada, retendo no mesmo «posto» muitos especialistas deste ramo por trinta anos sem promoção e direito a provas entretanto previstas. A resolução deste problema surgiu, treze anos mais tarde, durante uma «distracção» de um Secretário de Estado, e com isso, nem antes nem depois, se preocuparam sindicatos, gente da cultura, manifestantes próximos.
Esta lembrança ocorre-me a propósito da actual situação e tendo em conta que a maioria dos interessados não sabe, nem nunca chegará a saber, quais os movimentos de bastidores, oportunismos, temores, ignorâncias ou birras dos próprios técnicos de especialidade nos departamentos governamentais. A bola de neve cresce de tal maneira que, a certa altura, já ninguém se entende. E os erros, técnicos e políticos, aumentam a cada passo, esmagando o que o próprio ministério poderia estar em vias de resolver. A bem da verdade, e considerando erros como os que referi, penso que a actual contestação, entretanto focada sobre a avaliação dos professores, se expande também em termos desproporcionados relativamente ao «pequeno» nó do processo reformador em curso. Os próprios activistas, docentes e alunos, vão acabar por se prejudicar, entre passos atrás, cabeças degoladas, remendos impróprios. Como dantes, mesmo perante orçamentos para a Educação que têm sido sustentados sem faltas e com apropriações de equipamentos, meios, trabalho interactivo durante interessantes formas de profissionalização ou concepção didácticas. De facto, como foi dito no Expresso, o campo da luta sindical, sem verdadeira evolução, acabou por deixar, ao fim de trinta anos, graves marcas por defeito. «Os sindicatos da Educação tiveram uma contribuição decisiva para sucessivas gerações de alunos se prejudicarem e para a derrota nacional na frente educativa.
Por mim, sou apologista de um trabalho de avaliação em exercício, como se dizia hà vinte anos.
A carreira docente no plano do secundário, deveria ter, ajustadamente, três níveis de categorias. A primeira avaliação deveria ser solicitada pelo docente ao cabo de seis anos ou oito anos de serviço, garantindo-se uma rede de escolas para esse efeito, com todo o apetrechamento necessário e conteúdos bem concebidos para as disciplinas, cursos, ligação ao campo profissional e universitário. Os avaliadores, recrutados com rigor e formados para as novas funções, teriam a seu cargo vários docentes em avaliação, acertando com estes um programa de trabalho e de tese, observando prestações programadas, propondo medidas complementares ou outras. Entre um outro grupo de professores de completamento, mais presente junto dos docentes sujeitos a este processo, adicionados a uma turma, deveriam escolher-se, de forma a estudar, orientadores de trabalho e pesquisa que acompanhassem de mais perto os elementos em avaliação. Avaliação que poderia terminar com uma entrevista final feita por júri abalizado. Ao Estado competiria proceder às escolhas, reforço de formação dos avaliadores, além de outros, a par do estabelecimento da rede de escolas destinadas a esta actividade, escalonando e calendarizando pedidos de avaliação (entre seis a oito anos).
A luta que se exprimiu em Lisboa no dia 8 resultou num espectáculo revivalista, sem conteúdos verdadeiros, sem substância ou alternativa do processo científico. Fazer cair a ministra, sem um projecto adequado aos problemas, é comprometer a Educação e o país. Os ministros também aprendem. Os bons professores, da mesma forma. Até Marçalo Grilo saberá hoje qual a importância do design e como o ensino artístico é integrado nos estudos superiores por toda a Europa. Se vários governos gastaram treze anos das nossas vidas e do nosso saber para encontarem a sua vontade política, tal lição deveria impressionar professores, sindicatos e governo a fim de aperfeiçoar os suportes de avanço neste trajecto complexo e carregado de urgências.

terça-feira, março 04, 2008

ARTISTAS PORTUGUESES CONTEMPORÂNEOS | Pedro Chorão


É provável que a História da pintura contemporânea portuguesa tenha sido escrita um pouco sobre o joelho. A rara escrita de Pedro Chorão, arte abstracta de elevado grau de despojamento e cultura gestual, aliás consagrada em muitos estudos até hoje, acaba por vezes nas bolsas de ostracismo ou indiferença características dos caprichos da nossa aprendizagem. Nos anos 80, sob a estridência da crítica de vanguarda (nova crítica, aliás velha à partida) arrasava todos os autores quanto podia, artistas como Chorão, Dourdil, Resende, entre outros, apesar de a Júlio Pomar e Paula Rego ter sido concedido o atravessamento da cortina de ferro. Ainda vivemos nessa fronteira, enquanto os novos curadores escolhem 50 anos de pintura portuguesa a sua belo gosto, sempre ou quase sempre a partir dos anos oitenta e mediatizando adolescentes como figuras de proa, segundo a sua distorcida cultura prospectiva e museológica. Mas observemos agora Pedro Chorão, nesta altura com uma exposição em Lisboa, trabalhador incansável das artes e porventura de uma forma muio rara, no próprio panorama internacional, dado o grande despojamento que a caracteriza as suas propostas plásticas, esde representações gráficas e breves até à evanescência dos gestos gravados, liquefeitos na tela, entre cores terrosas
e ultimamente nos azuis de diferentes aberturas ao espaço, numa espécie gráfica do amanhecer. Em 1976, Chorão inscrevia um A tombado e grafológico numa das suas obras feitas de cinzas pálidos, de vastanhos quentes, de negros sucintos. O A é a primeira letra do nosso alfabeto. Inicia palavras como Abril, Alentejo ou Alma. O gesto solto, a tinta líquida, a cor seca, a escrita à flor da luz, signos, colagens e afloramentos figurativos -- eis alguns dados caracterizadores da pintura de Pedro Chorão, agora, ontem, talvez amanhã. Com A. É impossível, num espaço como este e perante a curta expectativa dos leitores, dizer uma página apenas sobre o artista, página do livro que escrevi sobre ele, nos anos 80, e que, embora marcado por capítulos sintéticos, ainda somava 110 páginas. Mal entendido pela crítica (actividade que se tornou académica na sua colagem à puberdade da invenção estética), Pedro Chorão associa-se a Sísifo, na perspectiva das semelhanças que envia para a cúpula do saber, e desenvolve, nessa espécie de destino do fazer plástico, o lirismo de uma poética da contingência: uma viagem que, apesar da sua lógica interna ou de um projecto, nos ensina a variação das probabilidades do acontecer por cada escolha e em cada encruzilhada.


DERIVA DA JANGADA DE PEDRA

JOSÉ SARAMAGO

Estabelecido na ilha espanhola de Lanzarote, José Saramago, prémio Nobel Português, tomou a iniciativa de aderir à Plataforma de Apoio a Zapatero, o líder do PSOE que se recandidata a um novo mandato. Trata-se, bem vistas as coisas, de uma opção política estranha, sobretudo tomando na devida conta o facto de que este escritor é um dos mais distintos militantes de base, há várias décadas, do Partido Comunista Português. Com efeito, somada esta intervenção com outras demonstrações do tipo de afecto que Saramago mitigadamente nos confere, a posição que assumiu parece permitir que os seus concidãos se interroguem, nomeadamente como aconteceu no blog «resistir» (próximo dos sectores intelectuais comunistas portugueses) pelo artigo de Cristóbal Garcia Vera intitulado «A discreta deriva de José Saramago para a outra margem». E mesmo nessa perspectiva, os argumentos são brandos: evocar o facto de que Zapatero, apesar de haver retirado as tropas espanholas do Iraque, foi um fiel aliado dos EUA na guerra global contra o terrorismo, parece pouca coisa para reparos ou indignações. Nem isso, nem o facto do exército espanhol continuar ocupado no Afeganistão, com aumento de efectivos. Para o jornalista Cristóbal Garcia, importa também o facto de muitos considerarem o mandato de Zapatero pouco louvável para os cidadãos em geral, não tendo havido a melhoria da situação do país, em termos de bem-estar, como referem os seus correligionários. São aqui introduzidas outras observações negativas, e graves, sobre o que terá acontecido entretanto, incluindo a saúde e a educação no país vizinho. «Com a injustificada vénia que costuma conceder-se aos ícones da esquerda (escreveu Cristóbal), o escritor português tem protagonizado um paulatino processo de deiritização, com episódios especialmente infelizes» E aponta a posição tomada por Saramago junto ao grupo PRISA, numa das suas mais agressivas campanhas contra o governo cubano ou a sua desqualificação da guerrilha colombiana das FARC como meros bandos armados, atitude que provocaram as primeiras críticas isoladas contra o Nobel Português. (1) Estas questões, entre outras, não inquietaram os intelectuais portugueses, nem mesmo, seriamente, o Partido Comunista. Mas essa aparente indiferença, num país onde se faz capa larga a pequenos casos do dia-a-dia da política, teria aqui uma grandeza superior se não acontecesse pelas piores razões do nosso redutor comportamento sócio-cultural. Muitas das atitudes de José Saramago, cujas mágoas interiores são insondáveis, devem-se mais ao seu mal disfarçado azedume pelas críticas e avaliações soprando, breves, entre nós, do que por uma guerra política contra personalidades do país que adoptou como país de acolhimento, aliás bem mais generoso do que Portugal em termos de benefícios materiais e largueza das mediatizações. O rectângulo onde Afonso Henriques iniciou um reino historicamente importante não vale pela sua dimensão, nem pelas suas mazelas, mesmo que o reivindiquemos maior do que Lanzarote. A grandeza que Saramago deveria reconhecer-nos é aquela que nobilita (sem bajular o poder) o seu livro «Memorial do Convento». Talvez essa seja a sua melhor obra, e tem Portugal nos feitos, na raiz, no povo e no sangue. Ter-se-á Saramago enganado ao virar a esquina, durante a cegueira branca que laboriosamente descreveu numa das suas obras posteriores ao Nobel? O seu amor por Vilar não explica tudo, nem ausência, nem impaciências, nem descrenças. Portugal está na língua em que ele se exprime e seria porventura mais natural, em jeito de referência dignificante, que reflectisse sobre as suas raizes, que se empenhasse publicamente, sem desvarios, no aprofundamento da natureza desta sua Nação, a do Convento e das Caravelas, a de hoje, na Europa, pobre, discutível, mas digna de ser olhada e pensada pelo seu primeiro Prémio Nobel em literatura. Apoiar o PSOE seria, com natural justificação, um recado a sua mulher, sem interferência pública no aparentemente seu país de culto. Imaginem que o rei, como na Venezuela perante outra personagem, lhe dissesse: «Esses são casos da nossa conta. Porque não te calas?

(1) em referência ao artigo de Cristóbal e ao tratamento do assunto no Diário de Notícias 3.03

sábado, março 01, 2008

NUNCA SABEMOS O QUE É A VIDA

ANTÓNIO LOBO ANTUNES


O título deste pequena homenagem ao escritor Lobo Antunes veio da sua própria boca, numa entrevista a Catarina Homem Marques. Ele acabara de dizer, um pouco antes, que «a morte tem os nossos olhos». Tenho lido, com regularidade, a obra deste homem invulgar no ser e no aparecer, um cidadão que se assume como o melhor escritor português vivo, que considera tal qualificação «uma evidência», e que, em todo o caso, diz com alguma simplicidade perturbadora: «Nunca sei se sou capaz de escrever ou não, tenho medo». Adianta, ao bater da mesma pergunta, se ainda tem esse medo: «Cada vez mais. Cada vez me é mais claro que sei muito pouco sobre o que quero escrever. Escrever é muito difícil.» Em face de um cancro que o surpreendeu a meio deste percurso, o escritor, cuja reflexão sobre a vida e a morte é eloquente, considerou que, naquela situação, somos confrontados com muitas coisas, refazendo os habituais alinhamentos sobre o futuro. «Ninguém é mais crédulo (disse) do que um desesperado. A minha experiência o dita, e percebe-se então que as pessoas são de uma fraqueza absoluta. Ninguém sabe o que é a morte, mas não faz muita diferença porque também nunca sabemos o que é a vida.» Sobre as pessoas, Lobo Antunes diz que gosta de algumas . Não muitas. O seu coração não é assim tão grande. «Gosto dos homens mais velhos do que eu. Sinto que tenho com eles uma amizade fraternal muito grande». Em relação propriamente aos escritores, Lobo Antunes pensa sobretudo naqueles com quem teve mais dificuldades, cuja leitura era no início complicada, difícil de comprender. Parecia-lhe vogar no nevoeiro. Depois, e como que de repente, tudo se iluminava, o caminho abria-se. «É preciso ler sem ideias preconcebidas». Ao ser questionado sobre o modo como os outros, ou as pessoas em geral, o vêem, o escritor foi determinante ao pronunciar que lhe era indiferente. «Não sei se já percebeu que me é completamente indiferente a imagem que têm de mim. Da mesma forma, a melhor maneira de lidar com os outros é tomá-los por aquilo que eles acham que são e deixá-los em paz. Isso não me preocupa». Lobo Antunes aceita que é um homem reservado e sobre os jornalistas pensa que só tem direito aos livros que escreve e não à sua vida. E, a propósito das entrevistas, diz que a verdade delas, se forem bem conduzidas e sem gravadores, está nos livros e não no autor. «Eu gostava um dia de fazer uma entrevista, a sério. Deve ser muito difícil. O entrevistado conta, obviamente. Mas o resultado depende sobretudo da empatia estabelecida. Já me perguntaram se percebo melhor os livros quando encontro os meus leitores. Há sempre muita coisa que me escapa nos livros. Não estou preocupado em compreendê-los. Aliás, a minha única preocupação é escrevê-los. Estou tão preocupado com os problemas técnicos que a cada passo o livro traz que não tenho tempo para me colocar esse tipo de interrogações». Do seu último livro, «O Meu Nome É Legião», o escritor é sensível à ideia de uma enorme fatalidade que recai sobre os meninos perdidos de si e da sua herança, embora não saiba se essa é a palavra certas para caracterizar as situações dos reformatórios. Em todo o caso, quando começa um livro, e isso é significativo, não dispõe de nada. Está só consigo mesmo. As coisas vão surgindo a pouco e pouco. O processo, contudo e por seu lado, não lhe parece do âmbito da fatalidade. A angústia, sim, ocorre. Espera sempre que haja, em volta e dentro das palavras, outros sentimentos, alegria, esperança, desespero. Isso pode decorrer depois com a leitura dos olhos de quem o lê, previsivelmente, ou da disposição com que se está a ler. «Há certas pessoas que dizem que os meus livros são polifónicos. Não me parece que sejam, mas a minha opinião é só uma opinião. Eu não os li, só os escrevi. De qualquer maneira, é cedo para se fazer um juizo em relação a esse livros. Há muitas coisas neles que escapam a um controle racional da minha parte. É-me difícil teorizar sobre eles».

Estes fragmentos e arranjos sobre a entrevista de Catarina Homem Marques, incluindo necessariamente os pontos mais ou menos fortes das respostas de Lobo Antunes, deixa-nos a alma um pouco seca. Talvez ele tenha razão sobre a necessidade de ser lido e sobretudo bem lido. Perante muitas coisas que ocorrem neste universo de confronto do homem com a sua própria obra, por vezes tem-se a sensação de que o livro está votado à indiferença dos outros, e que o seu verdadeiro destino é servir como objecto de leitura do próprio autor. Lobo Antunes já falou desta impressão, tão anónima é a minoria de quem (nos) lê. O modo como este escritor se exprime nas entrevistas é desconcertante, por vezes tocado de pontos de intensa luminosidade ou de uma partilha lassa e sincera, como aconteceu na conversa que manteve com Ana Sousa Dias. A televisão permitiu-nos ver o autor questionar-se, fazendo correr na voz macia sobre a mesa invisível ,presenças de dúvidas fugazes, obscuridades, cintilações, a entrega de quem sabe o peso da escrita e o seu efeito de libertação. Os seus livros têm vindo a tornar-se mais complexos e tecnicamente mas difíceis. As vozes cruzam-se, mesmo quando graficamente parecem vir da mesma pessoa. E é verdade que vêm. Lobo Antunes deixa-se assaltar pelas memórias e observações mais diversas, enveredando por vezes pelo caminho da engrenagem poética: certas frases que se alternam, lúcidas e retidas de um fragmento da fala enquanto decorre, lembram alguns versos de uma poesia que nos parece conduzir ao interior de nós mesmos, como descobrimos no teatro do absurdo, de Beckett. Um grito. Uma resposta. Uma incerteza. Uma impossibilidade. Entre a morte e a vida, sem futuro.