segunda-feira, julho 16, 2007

ANGOLA INDEPENDENTE

O carro derrapa na areia que se espalha pelo alcatrão. Coisa pouca. Um menino negro salta como gazela. Tem medo do visitante. Já vai longe, remover lixos em contentores, saltita num alcatrão devastado. A península que fecha a baía de Luanda do lado esquerdo, no crepúsculo, palpita de risos. Ontem morreu aqui um casal por assalto à mão armada. Os lugares são contingentes, sobretudo à noite. Há postos secretos, a essas horas, que se ligam entre si na passagem de drogas e outro comércio ilegal, pobres pescadores além. Os risos. Festa da nova sociedade angolana que se apropria de tudo e de todos, sacudindo perfume e sedas, em círculos concêntricos ao poder. Perto dos restaurantes, um polícia coloca-se à frente do carro. Deveria ter uma luva branca (imagino de memórias estranhas) mas a pistola metralhadora que o adorna faz bem o trabalho da luva, fica a mão. Tenho documentos especiais, um carro de luxo e um cartão de imprensa. O homem faz-me a continência: passo devagar, entre risos ali perto. Festas depois de festas, os ricos dispõem da cidade como querem, sobretudo na zona alta. No tempo da guerra, quando aqui estive, tomava banhos de água morna. Olho para o interior dos restaurantes e no Miami, o mais moderno: a alta sociedade luandense bamboleia ancas, seios, jóias. Os rostos pintados brilham, escorrem cremes, imitam até a sociedade colonial que o tempo ajudou a desfazer, bem depressa substituída por uma outra, essa assombrosa guerra civil que deixou o país arrasado. Em grandes áreas fecundas mas abandonadas, onde um dia haverá fósseis incongruentes, alguns técnicos procuram catar e desactivar as minas que ficaram no terreno, sem notícia, nem carta. As cidades destruídas ainda hoje se apresentam assim, talvez moribundas ou mortas, mas onde vemos por vezes meninos e mulheres carregando víveros e coisas de uso comum, compradas nas viaturas que vão e vêm, invisíveis. Mataram um casal mas não foi só ontem. Tudo o que é gente na noite, na posse de alguns objectos de uso comum, pode ser espoliado. Negar é enfrentar duas ou três facadas, a morte quase certa. Aquela gente que desceu à baía, conduzida por pretos luzidios, veio cumprir o ritual dos diamantes e do petróleo, comemorar aniversários, arranjos floridos de jovens destinadas a casamentos da «alta cidade.» Cada esbanjamento festivo é ornamentado com fogo de artifício, porque os diamantes ficam no cofre. E entretanto os seguranças lá vão estando atentos, descortináveis a olho nu. Os carros voltam de madrugada. Amanhã, aqui e além, nos lugares de luxo, a gula e o prazer voltarão. É um direito, dirão alguns. É roubo e usurpação, dirão outros. Subi ao depósito das águas e olhei em panorâmica o mar a perder de vista dos muceques, verdade social que teria um milhão de habitantes antes da independência e hoje, na cintura imensurável, alberga mais de quatro milhões de almas. O ar parece atravessado pelos cheiros de várias pestes associadas. A lama envolve a periferia, numa terra de ninguém, mas na qual, como dantes, os meninos brincam sem nexo, estatelando-se naquela espécie de barro escorregadio. Há gente poderosa, de visita ao governo do país, no alto requintado das residências, e os vinhos e os acepipes vão de ambulância para lá. Ali mesmo, onde acharam uma criança abandonada no entulho, coberta de sangue e pó, e já morta, passam os grandes senhores a caminho das suas mansardas. Luanda, aliás, acabou por ser destinada a fechar quase toda a Angola no seu interior, entre bairros degradados e muceques imensos, enquanto a verdadeira Angola se ignora a si mesma, de um lado os imensamente ricos, de outro a pobreza extrema, os pestíferos, os estropiados, meninos e velhos sem pernas, vitimados pelas minas ignoradas no ponto exacto, prontas a explodir e fazer vítimas durante um bom par de décadas. Curiosamente, os putos que brincam na lama ficam temporariamente irreconhecíveis, pretos, brancos e mulatos de súbito de cor homogénea e amiga. A outra e imensa Angola, fecha-se, pelo seu lado, nela própria, desconhecendo-se para além dos que roem ou cultivam raizes e deixa que o vento escorra para sul, anharas totalmente vazias . Do alto, num táxi aéreo, pode ver-se essa desolação. Voando mais baixo, posso tirar fotografias de aldeias inenarráveis, onde se descortinam crianças, mulheres batendo a mandioca, homens usando próteses e muletas, deambulando pelo patamar de terra batida, como se o mundo tivesse parado nessas imagens. Nas terras de ninguém é tudo lento e essencial, a breve passagem dos helicópteros dos senhores do poder e, em baixo, as vítimas da independência, comendo a mandioca que o diabo amassou.
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Nota: este texto foi inspirado na reportagem de Luis Pedro Cabral (Única, 15.07.07) e as fotos
adaptadas da peças de Sandra Rocha (Luanda). Aspectos complementares derivam da experiência da guerra que o autor deste Blog viveu mos anos 60.










2 comentários:

naturalissima disse...

Embora sejam Países diferentes, com uma guerra civil mais recente também diferente,... ao ler este espantoso texto, deixei-me levar pelas terras moçambicanas. Afinal existem tantas semelhanças.
Africa está a ser colonizada de outra forma. Os colonos são outros...
Vive-se num mundo indistinto... não me refiro somente Àfrica. Infelizmente é o mundo inteiro.

Gostei muito...
Vou reler
Umbeijinhodasobrinha

jawaa disse...

O seu texto é avassalador. Eu evito «voltar», ainda dói, porque senti aquela terra como minha por meus pais a terem adoptado. Através da maravilha do Google Earth, encontrei a minha fazenda... a casa aparece ainda muito longe, no meio do mato, à beira do rio, nem sei se alguém lá vive. É o único regresso.
Nas suas palavras encontrei a Luanda das minhas férias, na «água morna» da praia e trouxeram-me à ideia algumas memórias de meu pai que lhe transcrevo na íntegra (e peço que recorde que se reportam a 1920!):«A Luanda cheguei e na ponte do Carvão demorámos mais de uma semana, duas talvez. A ilha era batida em todos os sentidos, de lá atravessávamos a ponte sobre umas travessas, passávamos junto dos presos brancos acorrentados com grossas cadeias de ferros uns aos outros, íamos ver um hospital de colunas de ouro, almoçar e ver pretos gordos, luzidios e de colarinhos altos, pois que os nossos conterrâneos vestiam riscado vila, vendiam óleo de palma e amendoim e eram todos esqueléticos, amarelentos e de pior aspecto que os tísicos da metrópole. Aqueles negralhões, bem nutridos e bem vestidos, topava-os em toda a parte. E eu, em boa verdade, olhava para eles como para as peças de um museu.»
Confrontar novas civilizações, novas ideias, mudanças radicais, é sempre difícil e por vezes (direi, sempre)doloroso. Para as gerações seguintes é tudo mais fácil e natural.
Daí o meu comentário a Saramago.